Te amo, pai.
O texto a seguir apresenta cenas dramáticas, no entanto é para que o leito jamais se esqueça da importância de um Pai:
"A poltrona está posta de forma estratégica, virada à 180º de frente para a porta. Ao meu lado descansa uma enorme xícara de chá gelado com leite e algumas rodelas de limão. O sol que invade as frestas da persiana incomoda o canto dos meus olhos, e o tic-tac do relógio é pouco reconfortante. Meus olhos estão doendo, fixados na maçaneta, e já passa das três.
O telefone toca, mas não o ouço com devida atenção, não passa de um incomodo barulho ao fundo. Suspiro e sem vontade dou um gole na bebida. A lembrança invade minha alma como mil facas espalhadas pelo corpo.
Certos sabores, cheiros, lugares, e clima nos fazem recordar de momentos, mesmo que eles sejam efêmeros, corriqueiros. A mente prega essa peça avassaladora de nos fazer lembrar quando o que mais queremos é esquecer. É cruel, age sem dó e por muito tenho vontade de deleitar-me em total esquecimento com alguns comprimidos milagrosos. Mas para quê? Que seria de minha pobre carcaça se já não pudesse sentir a dor dela? Que meu corpo caminha eu sei, mesmo sem sentir, mas que minha alma acompanha-me é uma dúvida cruel; E deixá-la rasgar-se mais ainda por esse infinito labirinto de cicatrizes me faz ter menos dúvidas de que ela saiu correndo quando o mundo caiu.
Pois é, o mundo caí, desmorona, mesmo coberto de cimento e tijolos, mesmo muito protegido contra intrusos abusados. Entenda, nada é firme demais quando se luta contra a vida. Ir contra o universo é apenas fingir lutar uma batalha já ganha. Nós podemos ter tudo quando pedimos, e quando jogamos as palavras ao universo ele nos responde mais rápido do que esperávamos, até mesmo quando proferimos algo que na realidade não tínhamos a intenção. Bem, ele não sabe que somos um bando de humanos burros e problemáticos que gostam de gritar por aí: “Espero que você morra!”. O universo só responde, rápido e miseravelmente.
Um suspiro paira pela sala abafada. Não me movo um milímetro sequer. Com o gosto do chá ainda brincando entre a saliva percebo o quão masoquista sou. Preciso mesmo seguir o ritual de tomar o seu chá predileto? Por que não tomo apenas uma água com gás, ou um café bem forte? Não. Eu gosto de lembrar, eu gosto de me martirizar. Eu sou aquela criança do seu passado que costumava arrancar a casca das feridas apenas para ver sangrar mais ainda. Eu gosto, mesmo que me corroa.
Entretanto eu entendo que meu coração e alma nunca vão se aquietar. É mortalmente impossível que eles descansem em paz. Cessar a dor e inquietação presentes em mim vai além da vida, está na morte, é lá que jaz minha paz. Descansa e dorme serena, esperando para que eu implore por sua foice de juízo final. E Oh Deus, eu imploro que ela acorde e me tire do sufoco de esperar por nove anos. Por Deus tira-me do sofrimento, pois esperá-lo voltar todos os dias, no mesmo horário, no mesmo lugar, sem viver, sem nem ao menos sobreviver, é malvado. É o pior dos castigos. Oh eu rezo aos Anjos e santos que levem-me, pois já estou velho e esgotado, e lutar não faz-me mais diferença, pois eu não entendi ainda que ele realmente partiu. Quer dizer, ele se foi? Ele realmente morreu? Não, impossível. Eu sei que ele vai voltar a abrir àquela porta, com milhões de sacolas nas mãos e o rosto cansado de subir os degraus do prédio. Eu sei disso. Eu vou vê-lo sorrir, ou brigar comigo por eu não ajudar, vou vê-lo largando as compras e indo fumar, deixando a chave do carro em cima da mesinha de vidro. Ele vai voltar.
Cinco horas. Logo o sol se põe, e eu sei que quando o relógio der seis horas ele vai entrar pela porta, trazendo-me presentes e dizendo-me o quanto me quer bem. E então eu vou poder abraçá-lo novamente e desculpar-me por ter sido tão mal filho. Vou sentir o abraço de urso dele, e o cheiro forte, e então eu sei que não vou querer mais sair do abraço, porque só senti-lo por alguns minutos não adiantaria. Eu sei que ele vai entrar pela porta, não vai Pai?
Seis e meia. Ele está atrasado. Oh Céus! O trânsito deve tê-lo pego de jeito. Pergunto-me se ele raspou a barba nesse tempo que esteve fora, ou se largou o vício de fumar. Uma coisa eu sei, deve estar com tanta saudade como eu.
Oito horas. Agora eu me lembro o que houve. Ele não veio porque morreu. E eu fiquei aqui, esperando como sempre fiz durante toda minha vida enquanto ele ainda era vivo. Então uma lágrima corrói minha face e eu lembro que a dor é sempre a mesma, mesmo passados nove anos de espera. Logo passa, eu sinto.
Dez horas, está tudo muito escuro. O chá ainda está ao meu lado, pela metade. Meus olhos ardem o dobro agora, e eu posso senti-los fechando-se aos poucos. A persiana balança para os lados e deixa a pouca luz da lua invadir o local. O telefone não toca mais, e o relógio curiosamente parou. Ah, sim, o tempo parou. O tempo chegou para mim.
Meus olhos fecham-se em um súbito pestanejar e então acordo com o barulho das chaves na porta de entrada. Abro os olhos bruscamente e observo na expectativa. Meu coração está pulsando fortemente sobre o peito e posso até senti-lo na garganta junto de uma pelota de nós sufocantes. Vou para a ponta da poltrona, a porta abre lentamente e lá está ele: Pai. Sorrindo de braços abertos, apenas me esperando. Ele voltou! Ele disse que voltaria para me buscar, eu não me esqueço.
- Você demorou tanto! - corri ao seu encontro, para seu aperto fraternal. Ele afagou meus cabelos emaranhados e beijou o topo de minha cabeça.
- Mas eu vim. - sorri e continuei delirando em seu abraço apertado. Eu estava sumindo com ele, eu estava morto também. Finalmente livre, feliz, em paz. Eu estava onde meu coração sempre estivera, com minha única família." - POR THATIANE G. BERGAMO (eu, bjo)
